terça-feira, 2 de abril de 2013

Carta a um virtual amigo estrangeiro interessado em visitar o Brasil

Estimado amigo,

Não sei se você já está informado do caso, mas trago notícias terríveis do meu país. No sábado, 30 de março, em plena semana santa do calendário cristão, um casal de turistas norte-americanos foi a mais recente vítima de nossa decantada hospitalidade. No interior de uma van - transporte público muito comum por aqui, porque os ônibus e o metrô são precários - a mulher foi estuprada por três de meus compatriotas, enquanto o seu namorado, amarrado, era violentamente agredido com uma barra de ferro. O horror durou 6 horas. Este foi mais um dentre tantos episódios de violência contra estrangeiros que - ouso dizer - têm a péssima idéia de vir nos visitar. Por que continuam? Eis a pergunta que vivo me fazendo.

Sei que vocês costumam vir atraídos pelo aspecto pitoresco dos estereótipos que nos caracterizam: a simpatia, a cordialidade, a sensualidade, o descontração de nossa gente,  conjunto harmonioso emoldurado por paisagens paradisíacas e muito sol. Mas preciso te dizer que nós auto-incorporamos tais estereótipos como isca para atraí-los, pois eles ocultam com maestria a outra face da moeda: a vilania, a corrupção, a xenofobia, o nacionalismo orgulhoso, a violência, a falsidade. 

Amigo, a verdade é dura, mas eu me sinto no dever de te informar: nós gostamos muito do vosso dinheiro, mas, de resto, odiamos vocês. Para nós, vocês não passam de "gringos", sinônimo para "otários". Vamos, num primeiro momento, recebê-los com tapinhas nas costas, caipirinhas geladas e muitos sorrisos. Compreendemos intuitivamente o que Shakespeare fez Décio dizer em Julius Caesar: "Os unicórnios com árvores se pegam, com espelhos os ursos, os leões com fortes redes, os elefantes com profundas covas e os homens com lisonjas." (Ato 2, Cena 1). Quando estiverem inebriados e confiantes, os fisgaremos como sardinhas indefesas. O episódio da van foi apenas o aspecto criminoso e extremo de toda uma ideologia de ódio aos estrangeiros.

Aprendemos aquele ódio com muitos mestres. Nosso primeiro alvo foram os portugueses, que "nos descobriram" e nos deram nosso maior patrimônio cultural: a nossa língua. Oswald de Andrade foi quem desferiu os primeiros golpes com nossa borduna lusofóbica: antes dos portugueses terem descoberto o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade, disse Oswald, com uma infelicidade raras vezes vista em nossas letras. Além de evidentemente ridícula em termos historiográficos, a frase não encanta nem mesmo por motivos retóricos: é piegas e boboca.

Foi com Oswald e seus colegas modernistas que aprendemos também nossa maneira parasitária (antropofágica, diziam eles) de lidar com o outro. Para nós, o estrangeiro não é um outro sujeito, com quem devemos entrar numa relação de troca. Nós objetificamos o estrangeiro, fazendo dele nossa presa, nossa caça, o objeto de nossas vontades. O mote dos antropófagos - "só me interessa o que não é meu" - trai uma mentalidade avara, de ave de rapina que tudo quer tomar sem nada oferecer. Os dois turistas norte-americanos foram as últimas vítimas de uma cultura que toma o outro não por sua humanidade, mas pelos espólios que pode vir a deixar.

Aprendemos com Lula, nosso ex-presidente, que as últimas crises econômicas mundiais foram culpa de "gente branca, de olhos azuis" (ver aqui). Não sei se você está sabendo, mas voltamos a ser um país oficialmente racista. Durante o governo Lula, uma ministra de Estado chegou a declarar com todas as letras: "A reação de um negro não querer conviver com um branco, eu acho uma reação natural. Quem foi açoitado a vida inteira não tem obrigação de gostar de quem o açoitou" (ver aqui). 

Com aquelas palavras, o governo afirmava que a culpa pela escravidão transmite-se racialmente, e que a maldade do açoite está estampada na pele clara dos "brancos de olhos azuis", que deverão pagar eternamente, como numa tragédia grega, pelas culpas de seus supostos antepassados. As cotas raciais fazem parte dessa dívida branca. E, por todo o lado, há uma série de "Cobradores" (no sentido do conto de Rubem Fonseca) dispostos a executá-la. Com esse discurso neo-racista, o governo se exime da responsabilidade de prover uma educação de qualidade (dedicando-se, muito pelo contrário, a destruí-la completamente), por meio da eleição de um bode expiatório a quem lançar toda a culpa e de uma política de baixo custo, tanto mais ineficiente quanto mais demagógica. 

Permita-me abrir um parênteses que revela bem o ambiente cultural e político do meu país: o mesmo Lula que alegava defender os "negros" e "pobres" contra os "brancos" e "ricos" fez de tudo para subsidiar, com verba pública (que poderia financiar serviços para aqueles), as aventuras empreendedoras de um dos empresários mas ricos do Brasil - branco e de olhos azuis, aliás (ver aqui). Portanto, caro amigo, a não ser que você seja um empresário amigo do governo, se for "branco" e tiver "olhos azuis", saiba que não é bem-vindo aqui. Fecha parênteses.

No passado, o Brasil foi oficialmente racista. Os negros eram tidos por racialmente inferiores. Assim como, hoje, os neo-racistas acham que a maldade está fenotipicamente determinada na pele clara, antes a pele negra era sinal de pouca inteligência, de bestialidade, de corrupção moral. Os racistas brasileiros originais, repetindo psitacideamente  a ciência racialista vinda de fora, condenavam o caráter miscigenado da sociedade brasileira, defendendo políticas de "branqueamento progressivo" da nação, para livrá-la das deficiências morais e intelectuais que acreditavam ser inerentes às "raças" negra e indígena.

Foi um sociólogo nativo, sintetizando uma série de novos conhecimentos antropológicos, historiográficos e sociológicos, e acrescentando todo o seu gênio e originalidade, o responsável por derrubar aquele paradigma racista. Gilberto Freyre, nosso maior cientista social, conferiu positividade à nossa miscigenação, valorizando a herança cultural dos africanos e dos indígenas para a formação do Brasil. Foi ele o grande nome do anti-racialismo brasileiro. Foi graças a ele que, apesar do racismo renitente (e o racismo talvez seja uma daquelas características humanas mais universais e difíceis de erradicar), o Brasil deixou de praticar o racismo de Estado, o racismo oficial. Se o racismo hoje é crime inafiançável no país, devemos muito a Gilberto Freyre.

Hoje tudo mudou. E espero, amigo, que você não caia da cadeira com o que vou te contar. Hoje, o próprio Gilberto Freyre - pasme! - é considerado racista. Os primeiros neo-racistas,  tais como os racistas originais, repetindo também psitacideamente uma doutrina estrangeira, decidiram pulverizar a tese freyreana e introduzir o racismo oficial no país. Seu mestre era um sociólogo paulista de nome Florestan Fernandes, cuja grande contribuição intelectual foi macaquear a teoria marxiana da luta de classes e aplicá-la às "raças" negra e branca no Brasil. Mas Florestan e seus seguidores, se eram cientistas sociais apenas medíocres, eram muito influentes politicamente. Lograram, aos poucos, destruir a teoria e a própria reputação de Gilberto Freyre, e infectaram as elites culturais e políticas com sua ideologia disfarçada de sociologia. Pode-se dizer que, no instante em que escrevo estas mal traçadas, a ideologia dos neo-racistas está consagrada e converteu-se em política oficial do Estado. Foi daí que veio o atual ressentimento racista contra pessoas "brancas de olhos azuis".

Para nós, a pele e os olhos claros acendem um sinal vermelho. Os nativos com tais características são tratados como uma espécie de embaixadores dos "gringos" em solo brasileiro. São descendentes de portugueses ou coisa pior. Os "gringos", somos ensinados nas escolas e nas artes, são colonizadores cruéis, que se deram bem às nossas (nós, entenda-se, os índios e africanos) custas. 

Se forem norte-americanos (como eram as vítimas na van), aí então a coisa é mais séria. Aprendemos, com o PT, com Fidel e com Hugo Chávez, a chamá-los de "estadounidenses", um palavrão. Eles são imperialistas, destruidores da cultura nacional e - fato particularmente grave - foram os patrocinadores do Golpe Militar no Brasil, o que impediu que nos transformássemos num paraíso comunista como Cuba. Adoramos, em doloroso segredo e torturante culpa, a música americana, as comidas americanas, as roupas, os filmes, as séries, os esportes americanos. Mas, ainda assim, estamos convictos de que os EUA são o Grande Satã. E, quem quer que de lá venha nos visitar (nos explorar, provavelmente), será devidamente cobrado, como o foi o casal dentro daquela van.

Por fim, meu caro amigo, se com tudo isso você insiste em querer nos conhecer de perto, só posso pedir que Deus - que, temos certeza, é brasileiro - o proteja. Se, com sorte, você escapar de ser furtado, assaltado, chantageado, estuprado ou morto, ainda assim acabará no hospital, vítima da explosão de algum bueiro. Não tem escapatória. De algum modo, vocês, gringos malvados, hão de expiar a culpa por todo o mal que fizeram a nós, pobres e inocentes terceiro-mundistas.

Saudações antropofágicas,

Das Virtudes e Vícios do Ceticismo

Em maio de 2012, o autor destas linhas frequentava um curso preparatório para o difícil e concorrido concurso do Itamaraty. Faziam três...