quinta-feira, 11 de agosto de 2011

"Levanta, me traz um café que o mundo acabou": os tumultos em Londres como pretexto

 "Nós estamos entediados quase como se o tédio viesse de nós mesmos" (M. Heidegger)

Há muitos problemas com certo tipo de análise dos tumultos em Londres. Os atos de vandalismo e violência gratuita naquela e em outras cidades inglesas estão sendo interpretados por muitos como novas manifestações de uma crise terminal do capitalismo. O problema é que o capitalismo está em crise terminal desde Trótsky. 

Como muitos intelectuais anseiam pela queda do capitalismo mais do que por qualquer outra coisa, eles não podem deixar de solidarizar-se, em alguma medida, com os vândalos ingleses. É certo que tal solidariedade costuma vir numa linguagem prolixa, o que faz com que as análises aparentem ser tolerantes, moderadas e socialmente sensíveis. Antes de brindar o público com especulações sociológicas duvidosas, alguns analistas procuram fazer ressalvas do tipo: "Ninguém está apoiando a violência, mas...". O problema com esse expediente retórico é que ele soa muito parecido com aquelas manifestações de racismo que costumam ser antecedidas por "eu não sou racista, mas...". Sabe-se que o problema vem sempre depois do mas

Nas análises que tenho visto sobre as riots inglesas, o que vem depois do mas é, não raro, uma premissa equivocada: a revolta dos jovens possui razões profundas, ancoradas nas injustiças inerentes ao sistema capitalista. Os depredadores agem, mas os verdadeiros culpados seriam "o Sistema", "a sociedade inglesa", "o desemprego", "a falta de oportunidades" e uma série de outros bodes expiatórios. Alguns analistas sugerem ser necessário saber quem são os jovens rioters, como se o "desvelamento" sociológico de suas condições de vida - e é certo que uma parte deles vem das classes mais baixas (mas só uma parte!) - fosse explicação auto-evidente para a violência. Se descompactado, tal pressuposto revela-se intrinsecamente absurdo: é como se a pobreza conduzisse necessariamente à violência e ao crime; como se, partindo de certas categorias de pessoas, o ataque a seres humanos inocentes  (pois é isso o que está ocorrendo na Inglaterra) fosse uma manifestação legítima contra o sistema opressor. No Brasil, sociólogos, cientistas políticos e demais analistas apegam-se às formulações mais rudimentares e primitivas deste argumento.

Avançado por intelectuais anti-capitalistas, aquele raciocínio é sempre muito previsível. Como se trata de um esquema fechadinho, os fatos é que se virem para se acomodar dentro dele. Este estilo não é exclusividade brasileira, obviamente. O mesmo padrão de interpretação, sem tirar nem pôr, observou-se por ocasião dos atentados terroristas de 11 de setembro. Ali, pensadores badalados no establishment cultural globalizado, como Noam Chomsky e Jean Baudrillard, apontaram os EUA ou o sistema capitalista como os verdadeiros responsáveis pelos ataques às torres gêmeas do WTC. Tratava-se do mesmo vício de raciocínio: os terroristas estavam reagindo - ainda que de modo extremado, os analistas faziam questão de atenuar - à falta de oportunidades e à opressão gerada pelo "capitalismo global intervencionista".

Chomsky, por exemplo, não parecia estar muito indignado com os terroristas que mal acabaram de matar milhares de seus compatriotas. Em vez disso, acusou os EUA - justamente o país que lhe conferia prestígio graças àquele tipo de crítica - de ser um "Estado terrorista" (ver: Noam Chomsky. 2001. 9/11. New York: Open Media/Seven Stories Press).

Baudrillard não ficou atrás. Escreveu: 

"Olhando de perto, pode-se dizer que eles o fizeram, mas nós o desejamos... Quando o poder global monopoliza a situação a este nível, quando há tamanha condensação de todas as funções na maquinaria tecnocrática, e quando nenhuma forma alternativa de pensamento é permitida, que outro caminho há senão uma guinada situacional terrorista? Foi o próprio sistema que criou as condições objetivas para essa brutal retaliação" (ver Jean Baudrillard. 2002. The Spirit of Terrorism. London: Verso. pp. 5-6 - grifos meus).

A posição absolutamente infundada de Chomsky e Baudrillard - que trata o terror como uma retaliação - foi corroborada por muitos outros intelectuais e amplificada dentro e fora do universo acadêmico. Ela espalhou-se na mídia autodenominada "progressista" como fogo em palheiro. No Brasil, foi praticamente a única opinião adotada pelos assim chamados especialistas - aquelas mesmas pessoas que hoje vaticinam sobre as riots inglesas em programas de televisão, jornais, blogs etc.

Segundo aquela visão, os EUA, assim como um ímã, atraíram para si os ataques. Tudo se passava como se os terroristas da Al-Qaeda tivessem sido irremediavelmente atraídos para o campo magnético do WTC - símbolo do poderio econômico norte-americano -, não tendo outra alternativa (é Baudrillard quem diz com todas as letras!) que não a de se explodir contra milhares de inocentes. Os terroristas estariam expressando um instinto de liberdade, instinto demasiado humano que, sob condições de opressão, tende a se mostrar exasperado e, eventualmente, violento. Já os EUA, o país agredido, sendo inexorável e aprioristicamente culpado no tribunal da História, deveria absorver o golpe com humildade e resignação. Como disse o analista político Frédéric Encel, neste tipo de interpretação tudo se passa "como se os trabalhadores no World Trade Center e os passageiros dos aviões seqüestrados encarnassem o mal da América, tendo que expiar a culpa pelo culto do rei dólar, o destino dos Apaches, o McDonald‘s..." (citado por Paul Berman. 2004. Terror and Liberalism. New York & London: W. W. Norton &  Company. p. 203).

Sendo o "Império" ou o "Sistema" o único agente significativo do terrorismo, análises como as de Chomsky, Baudrillard e congêneres acabam por equiparar os terroristas e as vítimas, ambos passivamente sujeitos à atuação de um ator histórico que, de fora e acima, determina-os igualmente. Diante do algoz essencial e categorial - o Sistema - as vítimas de fato (os milhares de mortos nos atentados suicidas) e os agressores de fato (os terroristas da Al-Qaeda, Hamas ou Hezbollah) são todos, de direito, igualados na condição de pacientes históricos. Diante do "fato" primeiro da opressão, o terrorismo torna-se praticamente um imperativo categórico. Eis um tipo de "terrorismo intelectual" - na expressão de Jean Sévillia (Jean Sévillia. 2000[2009]. O Terrorismo Intelectual. São Paulo: Editora Peixoto Neto) - emergente após o 11 de setembro.

As interpretações de comentaristas brasileiros das riots em Londres seguem exatamente a mesma trilha. Poder-se-ia dizer que elas são menos interpretações do que está de fato ocorrendo, e mais enunciações de um ponto de vista ideológico travestido de análise, uma vez que o quadro interpretativo jamais se altera conforme realidades distintas. Na contramão da percepção comum - e da definição dos dicionários -, intelectuais progressistas demonstram descontentamento com o fato de que vândalos estejam sendo chamados de vândalos, depredadores de depredadores e arruaceiros de arruaceiros. Consideram que estes são rótulos discriminatórios e simplistas. Segundo eles, seria preciso tratar aquelas pessoas como "manifestantes", e compreender as razões de fundo para tanto ódio.

Na Inglaterra, até os meios de comunicação de viés esquerdista (como a BBC, por exemplo), já começam, diante das evidências, a chamar os perpetradores da violência por aquilo que eles são: vândalos, delinqüentes, baderneiros. Diante de cenas chocantes - como o roubo de pertences do jovem Mohammed Ashraf Haziq, espancado por uma turba de "manifestantes", ou o salto da polonesa Monica Konczyck para escapar de um prédio em chamas (cuja foto virou capa do The Daily Telegraph) - a opinião pública começa a se indignar contra violência tão gratuita e estúpida. A população inglesa cobra mais energia da polícia. Mais de 70% das pessoas manifestam-se a favor de uma intervenção do Exército para conter a desordem. Mais sensatos que nossos analistas, pais e mães de vândalos demonstram toda sua vergonha pelas atitudes insanas de seus filhos.

Partidários de uma visão de mundo rousseauniana-marxista, os intelectuais anti-capitalistas vêem os distúrbios na Inglaterra como expressão de uma luta de classes ou de um conflito racial entre negros pobres e explorados contra brancos ricos e privilegiados. No entanto, esta visão distorce profundamente a presente realidade. As principais vítimas dos ataques não são "a sociedade inglesa", ou "as classes favorecidas", ou mesmo "o Estado repressor". No conflito, os maiores prejudicados são pequenos comerciantes, pessoas comuns, muitos oriundos de países de terceiro mundo, que, sozinhos, têm procurado se organizar para proteger seus negócios, mantidos à custa de muito esforço e dedicação. A única violência de cunho aparentemente racista registrada até o momento partiu de rioters de origem afro-caribenha, que, aos gritos de "vocês vão queimar", atropelaram três jovens muçulmanos, que tentavam proteger seus comércios em Birmingham na última terça-feira (09/10/2011).

Em suma, parece inútil procurar razões concretas para o ódio que tomou conta de uma parte da juventude inglesa. As razões, possivelmente, não são tão evidentes quanto parecem aos intelectuais midiáticos. É claro que a possibilidade de a polícia londrina ter assassinado um jovem inocente - como havia feito antes com o brasileiro Jean Charles - pode ter sido o estopim da crise. No entanto, o ódio dos jovens extrapolou em muito aquele problema específico. Como escreveu o filósofo André Glucksman, "o ódio precede e predetermina o objeto que fabrica para si mesmo" (ver André Glucksman. 2004[2007]. O Discurso do Ódio. Rio de Janeiro: Difel. p. 140). O ódio não precisa de razões, apenas de pretextos. E é isso precisamente que intelectuais e formadores de opinião, para agir com responsabilidade e seriedade, deveriam evitar fornecer àqueles jovens. Nem a "falta de oportunidades", nem o "desemprego" e nem tampouco a violência policial podem ser justificativa para aquela revolta. Nenhuma condição adversa explica tamanha explosão de violência. A maior parte das conquistas humanas ao longo da história - sejam intelectuais, culturais, materiais ou espirituais - surgiram em condições adversas e em meio à total falta de oportunidades (guerras, perseguições, fome, injustiças etc.). 

Pense-se, por exemplo, nas "condições adversas" dos monges anacoretas que, perseguidos por todo o Império Romano, evadiram-se para o deserto para, de lá, espalhar o Cristianismo; ou na "falta de oportunidade" oferecida a Boécio, filósofo e mártir cristão que, na prisão, aguardando a sentença de morte, teve forças para escrever sua maior obra, A Consolação pela Filosofia; ou em Edmund Husserl, que, mesmo perseguido e coagido pelos nazistas por sua origem judia, produziu grande parte de sua magistral obra filosófica; ou em Viktor Frankl, que soube extrair dos horrores experimentados nos campos de concentração os princípios de uma vida íntegra e de uma prática psicanalítica eficiente. 

Nenhuma daquelas pessoas entregou-se a uma revolta gratuita e destrutiva, e teriam todas os motivos para fazê-lo. Em vez disso, fortaleceram-se e criaram bens culturais que transcenderam em muito suas próprias vidas. Talvez seja mesmo isso que separe o homem maduro - o spoudaios, como o chamava Aristóteles - do homem infantil - ou "homem revoltado", como o chamou Albert Camus.

Mas não é preciso ser nenhum Boécio ou Husserl para ser um homem maduro. Um exemplo de maturidade neste sentido pode ser colhido no seio mesmo dos tumultos em Londres. Ele foi dado pelo paquistanês Tariq Jahan, de 45 anos, cujo filho foi um dos três jovens mortos em Birmingham. Não consigo imaginar "condição mais adversa" e propícia à revolta do que a perda de um filho. No entanto, apenas horas depois de ter segurado o filho morto nos braços, o sr. Jahan ainda teve a força de espírito e a grandeza de recomendar à comunidade islâmica de Londres que mantivesse a calma e não pensasse em vingança, que naquele momento poderia dar início a um conflito étnico de proporções imprevisíveis (ver aqui).

Diante de atitudes como a de Tariq Jahan, parece-me absurdo querer justificar a violência apelando à "falta de oportunidades". Se um pai cujo filho foi morto covardemente não se revolta - e, muito pelo contrário, consegue até demonstrar generosidade e inteligência -, chega a ser indigna e tacanha a idéia de que um jovem possa sair quebrando tudo porque está desempregado.

Com seu humanismo rousseauniano algo alienado, muitos intelectuais apelam a causas abstratas como "o combate ao racismo", "o combate à desigualdade", "o fim do capitalismo", "a justiça social". Com isso, acabam menosprezando as situações enfrentadas por pessoas de carne e osso. Os vândalos londrinos acabam servindo de meros instrumentos para um discurso ativista, movido por uma espécie de tédio existencial. Os intelectuais ativistas parecem sempre entediados com a ordem liberal e burguesa. Com isso, acabam demonstrando uma mórbida euforia diante de eventos como os de Londres (e como os atentados de 11 de setembro). Isso ocorreu em diversos momentos da história e, não por acaso, muitos intelectuais enragés apoiaram regimes revolucionários e violentos. 

É por essas e outras que o intelectual enragé comporta-se, às vezes, como a mais alienada das criaturas, ignorando os sofrimentos concretos que as causas que defendem freqüentemente geram quando postas em prática. De vez em quando, fico com a impressão de que o intelectual ativista é um personagem da canção "Nostradamus", de Eduardo Dusek. Nada é capaz de abalar sua visão das coisas, e muito menos as próprias coisas. Diante do fim do mundo e da falecida cozinheira Carlota, é como se ele fosse pedir: "Levanta, me traz um café que o mundo acabou!". 

O que os rioters precisam é ser contidos e chamados à responsabilidade. Não precisam de bajulação, lisonja e pretextos fáceis para sua revolta, que são as únicas coisas que a moderna cultura ocidental tem lhes oferecido, graças à idealização tola da juventude, da novidade, da revolução e da rebeldia. 

Para se demonstrar interesse e compaixão verdadeira em relação aos vândalos londrinos - com a ressalva de que tal compaixão deve ser sempre secundária frente à compaixão com suas vítimas -, seria preciso, além de responsabilizá-los criminalmente, transmitir-lhes os seguintes conselhos: não acusem o mundo injusto ou a sociedade injusta. Parem, vocês primeiro, de cometer injustiças com os seus vizinhos. Não usem os "males do sistema" como desculpa para seus atos. Ao contrário do que dizem os bem-pensantes, vocês são os sujeitos da violência e não a sociedade. Saibam que, em circunstâncias muito mais desfavoráveis que as suas, homens e mulheres construíram e constroem coisas boas para si próprios e para os outros. Não sejam autocomplacentes e revoltados. A revolta não conduz a ações inteligentes diante de problemas determinados, mas a violência gratuita e difusa contra pessoas inocentes. Lembrem-se de que a juventude nazista também se dizia perseguida e vítima de um complô sionista. Por último, pensem por si próprios. A turba é sempre má conselheira, para não falar dos intelectuais anti-capitalistas...




segunda-feira, 9 de maio de 2011

A deterioração do debate público no Brasil: o STF e a "união homoafetiva"

Em “O Conflito Magiar", artigo publicado em janeiro de 1849 na Nova Gazeta Renana, revista editada por Karl Marx, Friedrich Engels criticava movimentos de cunho nacionalista, em particular o pan-eslavismo, por suas inclinações contra-revolucionárias (cf. ENGELS, Friedrich. 1849[1956]. “Der Magyarische Kampf” [Neue Rheinische Zeitung, número 194, volume 13]. In: Karl Marx & Friedrich Engels. Werke, Band 6. Berlin: Dietz Verlag. pp. 165-175).


Seguindo a linha de pensamento de Marx, Engels acreditava que, na marcha histórica rumo ao comunismo, alguns povos estariam tão atrasados, que, para a construção da futura sociedade comunista, seria preciso passar sobre eles feito um trator. Engels pensava especificamente nos sérvios, nos escoceses das terras altas, nos bretões, nos bascos, entre outros. No artigo citado, Engels chamava todos aqueles povos de Völkerabfälle, que significa literalmente "lixo racial". Segundo o autor, estes povos seriam não apenas "atrasados", como também "reacionários" (e peço que o leitor guarde bem essas palavrinhas mágicas). 

A solução proposta por Engels para aqueles povos era uma só: gänzlichen Vertilgung - ou, traduzindo, "extermínio total". Das muitas palavras possíveis em alemão para "extermínio", Engels optou pelo substantivo feminino Vertilgung, com o sentido específico de "extermínio de parasitas ou pragas".

No século XIX, o tipo de pensamento exemplificado por Engels era bastante comum entre intelectuais e cientistas. Trata-se do chamado evolucionismo social - que viria a ser, mais tarde, conhecido como darwinismo social. Ele consiste na idéia de que a história humana, como um todo, caminha para um mesmo fim, e que algumas pessoas privilegiadas podem saber que fim é esse, determinando nos outros, em conseqüência, graus de evolução: quem está mais perto do fim, é avançado; quem está mais longe, é atrasado. 

O evolucionismo social, como se sabe, serviu como fundamento moral e filosófico para uma série de políticas brutais e genocidas, como as praticadas por algumas potências imperiais, que, acreditando conhecer o sentido evolutivo da história, não hesitaram em atropelar povos "atrasados" ao redor do planeta.

No século XX, a coisa ficou pior. A revolução russa deu início a um sistemático programa de extermínio, culminando no Grande Terror stalinista, que, cumprindo ao pé da letra os desígnios de Marx e Engels, eliminou milhões de "atrasados" e "reacionários", e especialmente os eslavos. Tudo, é claro, em nome da maravilhosa utopia comunista. Também em nome de uma utopia - o Terceiro Reich - os nazistas procuraram eliminar os "parasitas" que impediam o surgimento do Novo Homem. O resultado todos conhecem: seis milhões de judeus mortos..

Depois de todo esse banho de sangue, era de se esperar que os seres humanos fossem ter um pouco mais de cautela no emprego de idéias evolucionistas. E, de fato, no Ocidente do século XX, surgiu toda uma corrente de idéias - notadamente dentro da antropologia social - que criticou o evolucionismo, tanto acadêmica quanto politicamente.

Por tudo isso, fico perplexo em constatar com que sem-cerimônia os formadores de opinião no Brasil rotulam sumariamente fatos e pessoas de "atrasados" ou "avançados", dispensando-se de definir um critério claro de aferição. Foi o que se viu em relação à recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de aprovar por unanimidade a tal "união homoafetiva". A imensa maioria dos formadores de opinião brasileiros decretou que a decisão tinha sido um "avanço", contrastando-a com o "atraso" dessa questão no Poder Legislativo. 


Resta a pergunta: em que ponto privilegiado de observação estão colocadas tais pessoas para poder decretar tão peremptoriamente o sentido preciso dos fenômenos sociais? Para determinar o "atraso" ou "avanço" dos outros, é preciso ter cruzado a linha de chegada. No caso em questão, há mesmo uma linha de chegada? Que corrida é essa, afinal?

Nestes momentos em que há uma espécie de unanimidade em torno de um "avanço" histórico tido por inquestionável (o termo "decisão histórica" foi usada incessantemente por todos os meios de comunicação para se referir aos votos dos ministros do Supremo), quem quer que faça alguma ponderação ou reflexão mais cautelosa é tachado de "reacionário" ou "atrasado", e excluído, ato contínuo, do rol de pessoas respeitáveis, boas e - supra-sumo das qualidades morais - "progressistas". Com tamanha pressão e chantagem públicas, quem é que arriscaria ficar de fora da vanguarda moral da história? Quem gostaria de ser chamado de "atrasado"? Quem quer ser o último colocado na corrida?

Respondo: eu. Não ligo em ficar ao lado dos "atrasados" e dos "reacionários", mesmo porque sei que, ao longo da história, o conjunto dos "progressistas" e "avançados" inclui gente como Stálin, Hitler e Mao Tse Tung, para ficarmos apenas com os maiores genocidas de todos os tempos. Por outro lado, muita gente boa - mas muita mesmo! - já foi chamada de "reacionária". Dependendo do tipo de "progresso" que se tem em vista, ser "reacionário" é um dever. Logo, estou escaldado com essa conversa mole de "avanço" e "atraso". Não me importo em ocupar as últimas posições na "corrida" (marcha, escada, ladeira etc.), porque acho que a idéia de corrida ou marcha rumo a uma meta preestabelecida é, em si, produto de mentes delirantes.

A decisão do STF pareceu-me absurda, uma concessão inaceitável à agenda e linguagem do ativismo gayzista. Minhas razões serão expostas a seguir. Queria antes dizer que, como era de se esperar, quando ironizei o uso da expressão "união homoafetiva" pelo SFT - apontando a total improcedência do termo a não ser como forma de militância GLBT (ver este post anterior) -, um amigo chegou a questionar-me no Facebook: "Para que tanto ódio no coração, rapaz?". 

Eu tinha certeza que uma reação daquele tipo não tardaria. Ela tem sido comum no debate público nacional. Afinal, eu estava nadando contra a maré da "decisão histórica" do STF. Todas as pessoas boas e cheias de amor no coração estavam com o STF (já lá bem pertinho da linha de chegada). Só mesmo alguém com "ódio no coração" para torcer o nariz num momento mágico como aquele. Quando todos gritam "Yes, we can!", só mesmo um reaça hidrófobo para ousar sugerir que "No, we cannot!"

Este é, decerto, um procedimento fácil. Quando não concordamos com alguém, há sempre a possibilidade de sugerir que suas idéias são movidas por ódio visceral. Tal técnica oferece a dupla vantagem de, por um lado, desqualificar a priori a opinião de nosso interlocutor e, ainda por cima, reafirmar, por contraste, toda a bondade e generosidade do nosso próprio coração. Para completar, "ódio no coração" é, evidentemente, algo démodé; o "amor no coração" é que está na moda. Vocês não vêem a Lady Gaga? 

Mas, sendo fácil, aquele  procedimento é também intelectualmente débil, além de politicamente infantil. Em primeiro lugar, porque, se gente como Shakespeare e Dostoiévski sempre considerou o coração humano algo misterioso, eu é que não me meteria à besta de tentar descobrir o que vai no coração alheio. Em segundo lugar, o que vai no coração das pessoas não importa nada no que se refere a temas de interesse público. Se conseguissem me provar por A + B que Hitler ou Osama Bin Laden fizeram o que fizeram movidos por um profundo "amor no coração", ainda assim eu continuaria julgando-os monstros.

Eu, pessoalmente, acho que a orientação sexual de uma pessoa não deve restringir-lhe qualquer direito civil. Logo, penso que homossexuais que mantenham um relacionamento estável devem poder unir-se civilmente, gozando dos direitos daí resultantes - pensão, herança etc. - como qualquer outro cidadão

Este é o aspecto que parece-me ser o crucial, e que está na base de minhas críticas à decisão do STF. É na qualidade de cidadão brasileiro que o homossexual deve ter direito à união civil, e não na qualidade de homossexual. A sexualidade de uma pessoa, se não pode ser impeditiva de direitos, tampouco pode ser fonte de direitos. E se, por um lado, até posso concordar com o mérito da decisão do STF - que, na prática, deveria igualar os direitos de homossexuais e heterossexuais -, por outro, eu considero absurdo o vocabulário utilizado pelos ministros - um vocabulário que tratou o homossexualismo como um valor em si mesmo (por vezes, como que acima da sexualidade hétero), digno de direitos específicos. O uso do termo "união homoafetiva" foi uma estratégia simbólica para dourar a pílula do homossexualismo. A questão terminológica pode, à primeira vista, parecer irrelavante. Mas a prova de que não é irrelevante é a mudança em si: se o nome da coisa não importa, por que mudar de "homossexualidade" para "homoafetividade"? Trata-se aí, evidentemente, de uma estratégia de marketing político, que, enquanto tal, não deveria ter sido adotada por altos magistrados (a não ser que, eles próprios, fizessem parte da campanha de marketing, o que seria um total absurdo).

Mas, além da linguagem militante utilizada pelos ministros, o fato mesmo da questão ter sido decidida no STF parece-me totalmente anti-democrático e aventureiro. Tratou-se de uma tentativa de se fazer "justiça" - de ser "avançado" -, ao atropelo da Constituição e da separação dos poderes. Os ministros do STF assumiram a função de legisladores, legisladores, no caso, que não foram eleitos pela população.

É preciso reconhecer que o Brasil tem uma Constituição e que ela está acima das opiniões e vontades subjetivas de um ou outro. E a Constituição é explícita em relação ao que entende por família. No § 3 do Art. 226, lê-se: "Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento".

O texto é taxativo, claro, explícito. Ao contrário do que sugeriram alguns ministros do Supremo, ele não é exemplificativo. Ele não deixa margem a interpretações. Para a aprovação da união civil entre homossexuais, seria preciso, inevitavelmente, mexer na Constituição. Logo, se fosse favorável à união civil entre homossexuais, o STF poderia, no máximo, ter apontado a necessidade da mudança na Constituição, mudança que é função do Legislativo.

Importa notar que não é por ser "atrasada" ou "reacionária" que a Constituição define a base da família como "união estável entre homem e mulher". Ela apenas está de acordo com a tradição imemorial das sociedades humanas ao longo da história, tradição que confere uma prioridade moral, filosófica, civil e religiosa à heterossexualidade, pelo simples fato de que a heterossexualidade gera humanidade (é embaraçoso ter que recordar, mas, sem o encontro fortuito de um espermatozóide com um óvulo, não há reprodução da espécie), ao passo que a homossexualidade não gera nada além de prazer aos que nela estão envolvidos. Prazer legítimo, sem dúvida, mas de interesse restrito.

Não estou sugerindo com isso que a Constituição jamais possa ser mudada de acordo com novos contextos históricos e sociais. Ela pode sim. Mas, nas sociedades democráticas, essa mudança cabe ao Poder Legislativo, cujos representantes são eleitos pela população. Eu, particularmente, creio que, no que se refere ao Art. 226, caberia uma emenda constitucional para estender a proteção do estado a relacionamentos homossexuais estáveis. Mas essa é apenas minha opinião. Ela não está acima do bem e do mal. Não sei se todos os brasileiros acham isso. Tampouco considero "atrasados" ou "reacionários" aqueles que, eventualmente, discordem de mim. Isso é democracia, caramba!. Se o Poder Legislativo, eleito pelo povo, não julgou pertinente o reconhecimento da união civil homossexual, paciência. Isto prova apenas que uma grande parte dos parlamentares é contrária à idéia. Como representantes eleitos, eles têm o direito e a legitimidade para tanto. Não há "atraso" nenhum nisso. O STF não tinha o direito de passar por cima do Legislativo. O Tribunal Federal pode ser Supremo, mas não é divino. 

Quem acredita estar na vanguarda da história, qualificando de "atrasada" toda opinião divergente parece-me ser um pseudo-democrata, um totalitário disfarçado de bonzinho e "progressista". Cheio de amor no coração, talvez, mas totalitário ainda assim.

Para que a emenda constitucional referente à união homossexual fosse concretizada, ela teria, repito, que ser sugerida por parlamentares, nunca pelos ministros do STF. Estes últimos são responsáveis por zelar pela Constituição, não por desqualificá-la ou burlá-la em nome de um suposto "progressismo". Neste último caso, o STF põe-se a serviço do "clamor que vem das ruas", que não se confunde com os interesses do conjunto da sociedade brasileira, representando apenas os desejos de uma militância organizada e barulhenta.

No caso específico, os votos dos ministros foram dados dentro do paradigma de combate ideológico contra a "heteronormatividade". O STF foi instrumento dos objetivos políticos da militância gayzista. Esta última, como argumento em outro post, está menos interessada em direitos civis do que em aumentar seu poder de polícia. Não por acaso, como mostra reportagem do Globo ("reportagem" talvez seja generosidade de minha parte), militantes gayzistas mal comemoraram a decisão do STF e já estavam preocupados em promover a aprovação do PL 122-06, projeto de lei que criminaliza a "homofobia". Quem imaginou que eles ficariam satisfeitos com a mera aquisição de direitos, enganou-se redondamente. Por que contentar-se com direitos, se, afinal de contas, a atual conjuntura mostra-se tão favorável à aquisição de poder?


Em última instância, creio que o STF foi instrumento do Poder Executivo, que, talvez como "nunca antes na história deste país", tem controlado e manipulado os 'movimentos sociais' e a militância organizada, por meio da distribuição de benesses ideológicas e/ou financeiras. 

Não sei ao certo, mas o que rola na rede é que, agora, "STF" já não significa "Supremo Tribunal Federal", mas "Soltando Toda a Franga". No Brasil de hoje, fica difícil saber se esse tipo de coisa é ou não uma piada. Devemos rir ou chorar?

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Tradução livre da resenha de René Girard sobre o filme "A Paixão de Cristo", de Mel Gibson

Atendendo a um pedido do meu pai, segue abaixo a tradução que fiz de um texto do antropólogo francês René Girard. Serve como reflexão para a Semana Santa.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

O animismo fetichista de nossos desarmamentistas

Em antropologia social, o termo animismo (do latim anima, "alma", "vida") - cunhado no século XIX por Sir Edward Tylor no livro Primitive Culture (1871) - qualifica a crença, comum a muitos povos 'primitivos', segundo a qual a posse de uma 'alma' não se restringe à espécie humana, observando-se também em animais, plantas, rochas, árvores, rios, fenômenos metereológicos e até mesmo em artefatos manufaturados. Em outras palavras, o animismo é a crença de que a condição humana (subjetividade, intencionalidade, inteligência, razão, desejo etc.) não é exclusividade da espécie humana.

Desde Tylor, e ao longo de muito tempo, o animismo foi considerado uma forma arcaica ou primitiva de religião. Dentro do paradigma evolucionista dominante na virada do século XIX para o XX, acreditava-se que ele seria uma característica de culturas 'atrasadas' (nativos das Américas, aborígenas australianos, tribos africanas etc.). Nesse contexto, o médico e antropólogo Nina Rodrigues escreveu O Animismo Fetichista dos Negros Baianos (1900), a primeira monografia significativa sobre as religiões afro-brasileiras. 

Adepto do darwinismo social e do racismo científico comuns à elite intelectual de sua época, Nina Rodrigues apontava a crença em fetiches (objetos supostamente dotados de poderes mágicos e sobrenaturais), característica das religiões afro-brasileiras, como um entrave à cristianização e à adesão ao pensamento científico. O animismo fetichista era, para Nina Rodrigues, uma das causas do atraso nacional, pois, segundo ele, tal crença não se restringia aos negros baianos, estando presente em vastas parcelas da sociedade brasileira.

Depois de um período de certo esquecimento, na década de 1990 o conceito de animismo voltou à moda na antropologia, em especial na sub-área de estudos sobre as culturas ameríndias sul-americanas (sub-área conhecida na França como "americanismo tropical", e no Brasil como "etnologia indígena"). 

O antropólogo francês Philippe Descola, em especial, sugeriu ser o animismo um traço marcante entre os povos caçadores-coletores da América do Sul. Segundo Descola, o animismo é uma visão-de-mundo que "confere disposições humanas e atributos sociais aos seres naturais". Já bem distante do paradigma evolucionista à la Tylor e Nina Rodrigues, o animismo em Descola não é mais índice de atraso evolutivo, mas uma característica cultural dos ameríndios sul-americanos.

Lamento o fato de que Edward Tylor, Nina Rodrigues e Philippe Descola não tenham tido a chance de conhecer os desarmamentistas brasileiros contemporâneos. Neste caso, sim, eles estariam diante de animistas de verdade, podendo decidir, com propriedade, tratar-se o animismo de atraso mental ou característica cultural. No caso específico, creio que as duas alternativas não se excluem.

O fetiche mais significativo da religião desarmamentista é, evidentemente, a arma de fogo, a quem os seus fiéis atribuem poderes mágicos e intencionalidade. Para os desarmamentistas, o problema do alarmantes índices de homicídios no país (que variam numa média de 40 a 50 mil por ano) será resolvido quando as armas legais e registradas - compradas por cidadãos de bem para sua proteção, e mantidas em casa para serem usadas apenas em casos extremos - forem apreendidas e proibidas. 

Os desarmamentistas parecem acreditar que a mera existência das armas é uma ameaça, independentemente de quem a esteja portando e para qual finalidade. É como se as armas fossem sair sozinhas das gavetas e dos cofres e - pá! pá! pá! (cito o excelentíssimo senador e pândego Eduardo Suplicy) - começar a matar pessoas. O fato de que seja possível cometer um homicídio com qualquer instrumento - até mesmo (haja criatividade!) com a vagina, como se noticiou recentemente (ler aqui) - não basta para convencer os desarmamentistas de que o problema talvez não seja com as armas, mas com os assassinos.

A lógica (lógica?) do argumento desarmamentista é a seguinte: as armas em circulação nas mãos dos criminosos costumam ser roubadas de pessoas que as adquiriram legalmente. Sendo assim, é preciso proibir o comércio legal para impedir que elas sejam usadas pela criminalidade.

Não é um raciocínio (raciocínio?) magnífico? Não, não é. Em primeiro lugar, ele desconsidera o fato - reconhecido há tempos pelo traficante Fernandinho Beira-Mar - de que uma grande parte das armas do crime organizado, que por sua vez é responsável pela maioria dos homicídios no país, é contrabandeada do exterior. Só as FARC - que, atenção!, nosso governo desarmamentista insiste em não qualificar de grupo terrorista, e com quem manteve relações políticas durante muitos anos no âmbito das reuniões do Foro de São Paulo - vendem uma grande quantidades de armas de fabricação estrangeira para quadrilhas como o CV e o PCC. Isso para não falar de outras fontes de armas contrabandeadas, atividade cada vez mais fácil, agora que o governo reduziu verbas e o contingente de policiais federais a vigiar nossas fronteiras (ver aqui). Ignorar esse fato já mostra as más intenções do desarmamentismo oficial.

Mas, imaginando verdadeira a hipótese de que o grosso das armas utilizadas pelos criminosos seja de origem legal, isso lá seria razão para penalizar aqueles que as compraram legalmente, enfrentando toda a rigidez e demora do processo licenciatório? 


Não é no momento legal de sua trajetória que as armas contribuem para o elevado índice nacional de homicídios, mas apenas quando, após terem sido roubadas, elas passam ao seu momento ilegal. Sendo assim, as alegações dos desarmamentistas são furadas, por uma série de motivos.

Em primeiro lugar, impedir que os cidadãos de bem tenham armas com o argumento de que, afinal, elas podem ser roubadas e utilizadas por criminosos é simplesmente um atestado de incompetência por parte do governo, que está admitindo, assim, ser incapaz de proteger o cidadão contra o roubo de sua propriedade (armas inclusas). Diante dessa admissão de inépcia, o contribuinte brasileiro bem faria em garantir sua própria proteção!

Em segundo lugar, a tentativa de responsabilizar a vítima do roubo só não é tão escandalosa quanto o fato de que os desarmamentistas do governo, eles próprios, continuarão protegidos por seguranças armados até os dentes, quando não por suas próprias armas (ver, por exemplo, o caso de Tarso Genro, um desarmamentista espertinho que, ele mesmo, tem posse de arma e duas armas de fogo guardadas em casa). 


De um lado, o governo permite que o crime organizado atue à vontade - ou alguém ainda leva a sério a política do "espanador" das UPPs? - e, de outro, continuará tendo direito à proteção armada. Ou seja, a solução governamental para diminuir os homicídios no país é desarmar unilateralmente as únicas pessoas que não têm culpa de nada: os cidadãos que compram armas de forma legal. Se depender do ministro do STF Luiz Fux, então, essas pessoas terão suas casas invadidas e as armas apreendidas na marra, numa proposta clara de violação da Constituição, que seria quase cômica - considerando-se vir da boca de um alto magistrado - se não fosse trágica. Não bastasse a ameaça dos criminosos comuns, agora temos que temer a ação dos criminosos oficiais, que ameaçam invadir nossas casas e nos impor à força sua agenda. E ainda querem que as pessoas entreguem alegremente suas armas? Não tenho uma arma, mas, se tivesse, agora mesmo é que não a entregaria. Quando gente como José Sarney e Renan Calheiros começam a falar em desarmamento, é hora de sacar a pistola!

Em terceiro lugar, pergunto-me: por que somente as armas de fogo? Por que não proibir também a posse legal de aparelhos de celular? Afinal, também eles são roubados e utilizados por criminosos para, de dentro dos presídios (onde, aliás, costumam funcionar melhor do que fora deles), comandar seqüestros, chacinas e execuções. Se a lógica vale para as armas, deve valer também para celulares, veículos e quaisquer outras ferramentas potencialmente úteis numa ação criminosa. Por que Luiz Fux, José Sarney e José Eduardo Cardozo não sugerem também a proibição da venda legal daqueles utensílios? É um absurdo que o cidadão comum tenha um celular e um carro, que serão posteriormente roubados e utilizados pela criminalidade. Deixemos que apenas os profissionais - bandidos e políticos (se ainda for  possível distinguir uns dos outros) - possuam tais coisas. E Lancemos logo a campanha, que deverá ser apoiada pelos bonzinhos do Viva Rio e pelo beautiful people das classes artística e intelectual: "Entreguem seu celular e seu carro em troca de um autógrafo (no caso, a impressão digital do polegar) do Tiririca!"

Em quarto lugar, o fato dos desarmamentistas terem aproveitado a tragédia da escola em Realengo para lançar a nova campanha é, não apenas imoral, como substancialmente absurdo. O argumento era o seguinte: não fosse tão fácil obter armas no Brasil, aquele evento não teria ocorrido. "Está provado, é científico!", concluiu Rodrigo Pimentel, ex-policial, consultor de segurança pública da Rede Globo e desarmamentista convicto.

Mas quem disse que é fácil conseguir armas no Brasil? Pode ser fácil consegui-las ilegalmente, mas obtê-las dentro da lei - como tudo no país - é um verdadeiro martírio. E a campanha do desarmamento - que incluía a proposta de Sarney de realizar um novo referendo (o ministro Luiz Fux disse que o resultado do primeiro foi "errado") sobre a proibição da venda legal de armas - não seria eficiente para o caso das armas ilegais, apenas para as legais. Logo, o psicopata de Realengo teria conseguido suas armas de qualquer jeito. E, ainda que não as conseguisse, teria arrumado outro jeito de cometer a barbárie. Sendo assim, culpar o comércio legal de armas por aquela tragédia é de um cinismo espantoso.

Mais ainda. Toda pessoa racional sabe que casos como os de Realengo, em que pessoas mentalmente desequilibradas vão a locais públicos dispostos a matar gente indefesa, são praticamente impossíveis de evitar. Nenhuma política de segurança pública, por mais eficiente, tem como prever e impedir tais ocorrências. A única ação comprovadamente eficiente - dentro dos limites do possível, é claro - contra tais eventos é, justamente, aquela de cidadãos de bem armados que, num ato de bravura, e tendo competência para tanto, impedem ou minimizam os estragos causados pelo atirador.

É o que mostra um detalhado estudo de John R. Lott Jr. e William M. Landes, da Faculdade de Direito da Universidade de Chicago. Segundo os autores: 

"De 1977 a 1999, os estados norte-americanos que adotaram leis que permitiam o porte livre de armas apresentaram uma queda de 60% nos ataques contra indivíduos e uma queda de 78% nas mortes em conseqüência de tais ataques".

As razões são óbvias. Por mais alucinados que sejam, os atiradores sabem que, nos estados que permitem a posse de arma, há maiores chances de, em se tratando de locais públicos, haver um cidadão armado que possa tentar impedi-lo. Por que será, afinal de contas, que massacres como os de Realengo sempre ocorrem em escolas e universidades, e nunca em locais como a National Rifle Association, um quartel ou o Palácio do Planalto?

Mas, mesmo nos casos em que o efeito dissuasivo falha, o atirador de rua faz menos vítimas onde há pessoas comuns armadas do que em lugares onde não as há. Depois da tragédia de Realengo, a imprensa brasileira logo relembrou casos como os de Columbine, nos EUA. No entanto, nenhum veículo de imprensa achou por bem mencionar os casos em que cidadãos armados conseguiram evitar ou minimizar o massacre. 

Os autores do estudo citado mencionam vários casos do tipo, entre eles: 1) Os dois estudantes de Virginia que, em 2002, pegaram suas armas no carro e conseguiram neutralizar um colega atirador; 2) O policial de folga, porém armado, que levava sua filha à escola no dia em que um aluno resolveu matar os outros em Santee (Califórnia), em 2001; 3) O dono de um restaurante em Edinboro (Pensilvânia), que, em 1998, usou sua arma para render o aluno que matara um professor e ferira mais três; 4) O diretor que também pegou sua arma no carro para apontá-la a um estudante homicida em Pearl (Mississipi), no ano de 1997. Em cada um desses casos, o número de vítimas não passou de três. Em Realengo, como se sabe, foram doze. E sabe-se lá quantas mais teriam sido se aquele bendito policial não houvesse aparecido e agido com firmeza!

Nos EUA - que os brasileiros (logo os brasileiros!) gostamos de ver como uma sociedade violenta e belicista ("não é característica nossa", disse Dilma) - os índices de homicídios são menores nos estados onde há a permissão legal do porte de armas do que nos estados onde não há. Nos EUA também - onde compra-se armas com certa facilidade - há, anualmente, cerca de 6 homicídios por 100 mil habitantes. No Brasil, em compensação - onde comprar uma arma de maneira legal é mais difícil do que ver um gol do Deivid, atacante do Flamengo -, há cerca de 26 homicídios por 100 mil habitantes: quase cinco vezes mais do que nos EUA, e numa população menor.

Mas não fiquemos apenas entre Brasil e EUA. Viajando das Américas para a Europa, tomemos os casos da Suíça e da Inglaterra. 

Na Suíça, virtualmente todo cidadão do sexo masculino possui uma arma e é treinado para usá-la. Trata-se, aliás, de uma exigência cívica. A política de exigir que todos os lares tenham uma arma de fogo é uma das principais razões por que os nazistas não invadiram a Suíça na 2ª Guerra Mundial. 


(Por falar em nazistas, convém recordar um fato histórico. Logo antes da terrível "Noite dos Cristais" (Kristallnacht) - quando, em 1938, teve início a infame violência nazista contra os judeus na Alemanha - o chefe de polícia de Berlim, Conde Wolf Heinrich von Helldorf, comandou o desarmamento da população judia, com o confisco de 2.569 armas curtas, 1.702 armas de fogo e 20.000 cartuchos de munição. "Quaisquer judeus ainda achados de posse de armas sem licenças válidas são ameaçados com a mais severa punição", declarou von Helldorf [The New York Times, Nov. 9, 1938, 24]).

No Brasil, o passatempo nacional é o futebol. Nos EUA, é o beisebol. Na Suíça, é o tiro ao alvo de precisão. Mas a prova de que, ao contrário do que crêem nossos animistas, as armas de fogo não saem sozinhas atirando nas pessoas, é que a Suíça é um dos países mais pacíficos do mundo. Lá, há menos do que 1 homicídio a cada 100 mil habitantes por ano, e em 99% dos casos não há arma de fogo envolvida. Lá, um criminosos pensa duas vezes antes de invadir a casa de alguém.

Cruzando o Canal da Mancha, o caso da Inglaterra é bastante ilustrativo. Até agora tenho feito comparações internacionais (entre nações), mas a Inglaterra permite-nos uma interessante comparação intranacional (diferentes momentos de uma mesma nação) no que se refere às relações entre políticas de desarmamento e índices de criminalidade.

Segundo matéria do jornal britânico Mail Online, o número de crimes por arma de fogo aumentou 89% entre 1998 e 2008. "Até aí nada", poderia dizer o leitor. Seria nada, realmente, não fosse o fato de que esse significativo aumento ocorreu exatamente na década seguinte à lei do desarmamento na Inglaterra, que proibiu o comércio de armas de fogo no ano de 1997

Nenhum dado poderia ser mais evidente para comprovar a ausência completa de relação entre desarmamento e diminuição dos homicídios. Minto. O que aquele dado atesta é que há, sim, uma relação entre os dois fatores, e ela é precisamente o inverso do que sugerem os desarmamentistas: quanto menos armada é a população de bem, mais os criminosos ficam violentos e ousados (foi exatamente o que ocorreu na Inglaterra); quanto mais armada é a população ordeira e obediente às leis, menores tendem a ser os índices de homicídios por arma de fogo. 


É aquela coisa do ditado popular, deselegante sem dúvida, mas perfeito nesse caso: "quem tem *%@, tem medo".

Está provado, é científico!

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Ricardo Noblat: um caso típico da doença espiritual brasileira

"Todos dentre a elite alemã estavam envolvidos na criminalidade e na estupidez do regime nacional-socialista e estão carregados com esse envolvimento até hoje; pois essas pessoas ainda estão vivas e não querem admitir que o que aconteceu foi criminoso e louco, porque, então, eles também teriam de admitir que eles próprios são criminosos e loucos" (Eric Voegelin, Hitler e os Alemães)


Em Hitler e os Alemães (São Paulo: É Realizações, 2007), o filósofo político Eric Voegelin faz um profundo diagnóstico das condições intelectuais e espirituais da sociedade alemã da primeira metade do século XX, condições tais que possibilitaram a ascensão do nazismo ao poder. Diz Voegelin:


"Nosso problema (...) é a condição espiritual de uma sociedade em que o nacional-socialismo pôde chegar ao poder. Então, o problema não são os nacional-socialistas, mas os alemães, entre os quais personalidades do tipo nacional-socialista podem tornar-se socialmente representativas (...) o nacional-socialismo é, na verdade, precedido por uma sociedade em que ele chegou ao poder" (op. cit. p. 106).


Penso que uma análise como a de Voegelin seria imprescindível para a compreensão da hegemonia lulo-petista no cenário político brasileiro. O lulo-petismo também foi precedido por uma sociedade na qual ele chegou ao poder; uma sociedade que aceitou ser representada - não digo apenas eleitoralmente, o leitor já irá notar - por uma figura como Lula, que, tal como fora Adolf Hitler (ver Voegelin, op. cit. p. 88), é um político talentoso, mas sem qualquer outra qualidade (moral ou intelectual). Afora sua esperteza política, Lula é um homem sem qualidades. O que pretendo argumentar nesse texto é que, justamente por sua falta de qualidades pessoais superiores (falta da qual, no íntimo, se ressente, ainda que, em público, se jacte), e por sua malícia eleitoreira, Lula foi eleito pelos brasileiros como seu líder máximo e expressão visível de seu caráter. É triste constatar, mas a malícia política tornou-se um alto valor humano na sociedade brasileira.

Lula sabe que não presta, e vê no fato de conseguir impor-se a despeito de não prestar - ou, antes, precisamente porque não presta - uma grande e honorável virtude. Como sei que Lula não presta? Basta uma breve radiografia de sua figura para se chegar à resposta, evidente e cristalina não estivesse o país, ele próprio, mergulhado em estado de morbidez espiritual. 

Quem é Lula? Trata-se, em primeiro lugar, de um homem que se gaba por nunca ter estudado, mas, graças a uma inteligência cruamente pragmática, ter subido na vida. Um homem que, no momento da comunhão católica (o rito fundamental da religião que ele professa seguir), comenta ser uma pessoa "sem pecados" (ver aqui). Um homem que, movido por um machismo vaidoso, e por um senso de humor tão elevado quanto a cloaca de uma pata, é capaz de contar ter tentado sodomizar um companheiro de cela - "não vivo sem boceta" (sic), confessa o "filho do Brasil", confundindo, ao que parece, alhos com bugalhos (ver o famoso artigo de César Benjamin sobre o caso do "menino do MEP"). Um homem que, ludibriando os próprios companheiros políticos, escondeu "um monte de bala paulistinha" embaixo do travesseiro, para burlar uma greve de fome (ver aqui, a partir dos 2'23'' de vídeo).

Lula é também aquele que, diante da escandalosa fraude eleitoral no Irã, e da violenta repressão aos manifestantes nas ruas, foi capaz de sugerir que tudo não passava de "choro de perdedor". Aquele que, em outra ocasião, mostrou-se indiferente e sarcástico em relação ao sofrimento dos presos políticos cubanos, refestelando-se, em compensação, com seus companheiros Fidel e Raúl Castro, líderes de uma das ditaduras mais sangrentas e duradouras da América Latina. Aquele que, no momento de intensa repressão e restrição da liberdade de imprensa por parte do governo de Hugo Chavez, afirmou haver "democracia até demais" na Venezuela. Aquele que não hesitou em chamar o genocida líbio Muamar Kadafi de "amigo e irmão". 

Tratava-se em todos aqueles casos de pragmatismo político, justificavam seus asseclas. Sim, é claro. Mas, como recoda Voegelin sobre o caso alemão, esse tipo de pragmatismo é muitas vezes a face mais pusilânime do mal:

"O problema é que o homem se torna completamente insignificante em comparação com sua qualidade de membro de um grupo de interesse. Ou seja, contanto que os do grupo de interesse (...) não sejam imediatamente atingidos em seus interesses, eles [os que defendem tal visão] não têm uma palavra a dizer sobre o fato de seus concidadãos serem assassinados, levados a campos de concentração, maltratados ou, finalmente, asfixiados com gás em Auschwitz - nem uma palavra contrária a todos esses crimes contra a humanidade" (op. cit. pp. 247-248).

Tal descrição bem poderia ser aplicada a Lula e muitos membros do seu partido. Eles não estão preocupados com violações dos direitos humanos em Cuba, no Irã ou na Líbia, contanto que seus interesses político-partidários - e suas bandeiras ideológicas - sejam preservados. A identificação de um petista com o partido é sempre maior do que sua identificação com a pátria ou mesmo com a espécie humana. 

À parte seu pragmatismo político, Lula é também um homem emotivo, que chora à toa. Os motivos do choro são sempre os mesmos: sua infância pobre e sofrida, os preconceitos que teve de enfrentar por ter sido metalúrgico, a perseguição que pretensamente sofre por parte dos meios de comunicação e das "elites". Ainda que tenha sido o presidente mais paparicado pela imprensa e pela zé-lite, Lula faz manha. E esta é mesmo uma das características notáveis de sua personalidade: em paralelo à ausência total de sensibilidade diante do sofrimento alheio (se o pragmatismo político assim o exige), percebe-se na alma de Lula uma hipersensibilidade aos próprios sentimentos. Lula tem muita pena de si mesmo e, por isso, ele chora. 

E como chora esse homem (o leitor experimente buscar "Lula chora" no YouTube)! Trata-se de um caso notável: Lula é duro feito côco frente aos presos cubanos e às vítimas da repressão iraniana, mas mole feito mingau de macaxeira quando fala de si próprio. Alguém consegue imaginar um Júlio César, um Napoleão Bonaparte, um Abraham Lincoln, um Roosevelt ou um Churchill derramando, em público, tantas lágrimas de autocomiseração? Pois Lula as derrama em profusão. E, mesmo assim, comportando-se como um sujeito débil e meloso, a opinião pública nacional insiste em considerá-lo um grande estadista, em vez de cobrá-lo da única maneira que se esperaria em casos como o dele: seja hômi, cabra da peste! Lula é mimado e exige sempre mais mimo. Caso contrário, chora.

Resta inevitável que um país siga os passos daqueles que elege como modelos de seu caráter coletivo. O Brasil como um todo - e mais especificamente sua classe falante - está ficando cada vez mais parecido com Lula. Em lugar da altivez, da serenidade e do mérito, o brasileiro tem optado, assim como o seu guru, pela auto-vitimização, pelo histrionismo e pela malícia. O mercado de vítimas está ficando inflado no país. Bons tempos aqueles em que o ditado "homem não chora" ainda tinha alguma relevância. No Brasil de hoje, homem não apenas chora, como chora por qualquer motivo, e especialmente por pena de si mesmo!

Um dos traços da personalidade de Lula que tem sido naturalizado e incorporado pela opinião pública nacional é a esperteza política. Para se compreender a fundo o "fenômeno Lula", seria preciso que se escrevesse uma obra intitulada "Lula e os brasileiros", a exemplo do livro de Voegelin. Mas um trabalho desse porte está além das minhas capacidades. E, infelizmente, não creio que haja no Brasil alguém em condições de realizá-lo. Um país que já teve um Gilberto Freyre, um Mário Vieira de Mello, um Mário Ferreira dos Santos, um José Osvaldo de Meira Penna e outros tantos grandes pensadores, hoje não conta com intelectuais que se aproximem da estatura de um Eric Voegelin. 

Sem poder realizar sozinho o trabalho hercúleo de documentação e análise que seria necessário a respeito do tema, o que proponho aqui é menos uma investigações de causas do que uma amostragem casual do problema. Por ora, é tudo o que sou capaz de fazer.

Para o presente estudo de caso, examino um texto do jornalista Ricardo Noblat a respeito de um comentado artigo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) publicado por estes dias, e que versa sobre o papel da oposição no país. O artigo de FHC causou grande barulho graças a um trecho específico, distorcido e manipulado ao gosto do freguês. Nele, lê-se o seguinte: 

“Enquanto o PSDB e seus aliados persistirem em disputar com o PT influência sobre os 'movimentos sociais' ou o 'povão', isto é, sobre as massas carentes e pouco informadas, falarão sozinhos. Isto porque o governo 'aparelhou', cooptou com benesses e recursos as principais centrais sindicais e os movimentos organizados da sociedade civil e dispõe de mecanismos de concessão de benesses às massas carentes mais eficazes do que a palavra dos oposicionistas, além da influência que exerce na mídia com as verbas publicitárias.”

De Londres, e em resposta ao artigo do rival (que, é claro, não deve ter lido, e se lesse não teria entendido), Lula respondeu de bate-pronto, com sua gramática e raciocínio tão peculiares:

“Eu. Sinceramente. não sei o que ele quis dizer. Nós já tivemos políticos que preferiam cheiro de cavalo que o povo (sic.). Agora tem um presidente que diz que precisa não ficar atrás do povão (sic.), esquecer o povão. Eu sinceramente não sei como é que alguém estuda tanto e depois quer esquecer do povão” (ver aqui).

A resposta de Lula não surpreende, é claro. Não se poderia esperar dele algo além de populismo rasteiro e mistificação, dois elementos constitutivos de sua natureza. O que espanta é o fato de Lula ter sido acompanhado por vários membros do próprio PSDB, que, cedendo à chantagem lulista - como haviam feito na última campanha eleitoral -, tentaram  se esquivar da companhia de FHC, para poder disputar com o PT a hegemonia do populismo e do assistencialismo barato. Esforço inútil, é claro. Num concurso de populismo, vence, por definição, o mais populista - no caso, o popululismo

Muito antes de conquistar o poder do Estado, o PT já vinha, há décadas, preparando a sociedade para recebê-lo incondicionalmente, por meio da estratégia gramsciana de ocupação de espaços. Intelectuais, artistas e jornalistas petistas e filo-petistas conseguiram, durante muito tempo, fazer-nos crer na idéia de que o PT era um partido ético (ver, por exemplo, essa declaração da filósofa petista - com perdão do oxímoro involuntário - Marilena Chauí). A lavagem cerebral foi muito bem-sucedida. Para muitos, mesmo o escândalo do Mensalão não conseguiu quebrar o encanto. 


A despeito de ter deixado de ser operário há muito tempo e de ter ganho a eleição após uma campanha publicitária milionária, o epíteto "presidente operário" associado a Lula grudou feito cola nos corações brasileiros, tão afeitos a histórias bonitas. Consta que Napoleão Bonaparte teria dito que, para se fazer uma guerra, era preciso três coisas fundamentais: dinheiro, dinheiro e dinheiro! O mesmo se passa com campanhas eleitorais. Mas o brasileiro resolveu acreditar até o fim no conto de fadas do operário que, num passe de mágica, virou presidente e, porca miséria, continuou operário! (Imagine-se Abraham Lincoln, por ter sido balconista na juventude, sendo chamado de "presidente balconista" pelos norte-americanos. Impensável. Esse tipo de coisa só acontece no Brasil. Qualquer criança norte-americana sabe que um balconista, qua balconista, não tem condições de ser eleito presidente. Por aqui, ao contrário, não faltam marmanjos barbados com lágrimas nos olhos ao falar do "presidente operário").

Para qualquer pessoa alfabetizada e honesta, resta evidente que FHC não recomendou, nem de longe, que o seu partido "esquecesse o povão". O que ele disse, com razão, foi que o PT aparelhou os movimentos sociais, que ora se pretendem os únicos representantes legítimos do povão, e uma grande fatia da imprensa.

As aspas irônicas usadas por FHC nos termos "movimentos sociais" e "povão" pretenderam sugerir que o acesso direto às populações de baixa renda está totalmente controlado pelo PT, que, por meio de seus braços militantes (CUT, MST, UNE... Luis Nassif etc.), repassa àquelas pessoas toda sorte de mentiras e mistificações. FHC não disse para a oposição abandonar o povão. Disse apenas que, por uma questão estratégica, ela não deveria começar pelo povão, optando, antes, pelas parcelas da sociedade com maior acesso à informação. Antes de se dirigir à população de baixa renda, seria preciso criar condições para se quebrar o cordão de isolamento ideológico montado pelo PT, partido que compra consciências em troca de benesses, esmolas e cargos.

Eu, pessoalmente, não creio que FHC e o PSDB teriam condições de romper aquela situação, mesmo porque FHC foi um dos grandes responsáveis pela instituição do politicamente correto como forma de governar, contribuindo assim por criar o caldo cultural de onde o PT pôde emergir com toda a força. FHC é um pouco pai de Lula (e quem quiser se aventurar numa especulação freudiana acerca das obsessivas tentativas lulistas de matar o pai, fique à vontade).

De todo modo, reconheço que o artigo de FHC é lúcido, claro e pertinente, consistindo na seguinte tese: oposição tem que fazer oposição, ou seja, propor uma plataforma e assumir uma identidade diferentes daquelas do partido governante. Enquanto quiser ser mais realista que o rei - ou mais petista que o PT - a oposição está condenada à extinção. (Haja visto o preço pago por José Serra por sua eterna covardia e pusilanimidade).

Ricardo Noblat parece ter compreendido corretamente o artigo de FHC. No seu texto - intitulado significativamente (já explico) "A lição que Fernando Henrique não aprendeu" - ele afirma:

"O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso não recomendou que a oposição desprezasse o povão e se fixasse na luta pelo voto da classe média. Sem o voto do 'povão' ninguém ganha. Mas é isso o que ficará do artigo. E é isso o que será explorado nas próximas eleições pelo PT e seus aliados. Porque numa passagem do artigo os mais apressados - e os maldosos - de fato podem entender que o ex-presidente sugere deixar o 'povão' para lá."

Escolhi falar do artigo de Noblat pela seguinte razão. Esse articulista costuma fazer análises políticas formalmente equilibradas e neutras, alternando, à primeira vista equanimemente, críticas e elogios tanto ao governo quanto à oposição. Não se pode identificar o Noblat, de forma inequívoca, com o jornalismo escandalosamente pró-governo de um Luis Nassif ou de um Paulo Henrique Amorim, nem, tampouco, com críticas mais contundentes ao governo, como as um Reinaldo Azevedo, um Augusto Nunes ou um Guilherme Fiuza. Noblat gosta de se apresentar, e muitos assim o percebem, como fundamentalmente neutro. O problema é que, não raro, Noblat é neutro ali onde a neutralidade já é uma tomada de posição. Mas isso fica para um outro post (para os interessados, recomendo uma e outra análises do blogueiro Felipe Moura Brasil - o Pim - sobre o modus operandi típico de Noblat).

Nas redes sociais, muito se discute sobre se Noblat é petista ou psdebista (tal alternativa, aliás, sendo a única escolha de vida concebida pela maior parte dos internautas brasileiros). Eu tendo a concordar com o articulista nesse ponto: não há nada em suas colunas que indique uma adesão incondicional a um ou outro partido. Não tenho a mínima idéia se Noblat vota no PT ou no PSDB. E, na realidade, isso pouco importa. Já escrevi em outras ocasiões que, ao contrário do que os brasileiros costumam achar, a disputa partidária não ajuda em nada a esclarecer as reais forças políticas em jogo no país. A bipolarização partidária (e mesmo eleitoral) entre PT e PSDB só serve para encobrir e mascarar a seguinte realidade: o PT exerce tamanha hegemonia política e cultural, que, como venho argumentando, a oposição julga necessário mimetizar ao máximo suas características para obter sucesso eleitoral. As eleições no Brasil são mero formalismo de superfície sobre um fundo político-cultural lulo-petista.

Mesmo que Noblat seja um eleitor do PSDB - e escolhi-o como objeto de análise justamente porque, no seu caso, não é fácil afirmar -, ele parece-me representar um caso clássico de petismo cultural. Noblat não faz propaganda petista como Luis Nassif e Paulo Henrique Amorim. Ele é petista por inércia, quase sem sentir. Uma vítima do petismo lubrificado, indolor.

Em relação ao artigo de FHC, apesar de tê-lo compreendido adequadamente, Noblat usou o padrão-Lula de julgamento, e censurou-o justamente por sua ausência de malícia política. Ao contrário de Lula, que é político 24 horas por dia, FHC teria sido sociólogo demais naquele artigo, deixando o político em segundo plano. De um ponto de vista sadio (leia-se, imune ao vírus lulo-petista), aquele seria um motivo de loas a FHC. Para Noblat, pobre infectado, trata-se de motivo de censura: FHC não aprendera a lição. Nas palavras do jornalista:

"O artigo divulgado esta semana foi escrito pelo sociólogo Fernando Henrique - não pelo político semi-aposentado que ele é. Se o político tivesse prevalecido sobre o sociólogo, o ex-presidente certamente não teria derrapado no parágrafo que está sendo lido como uma espécie de resumo do que ele quis dizer" (eu grifo).

Noblat mostra-se um tanto quanto indeciso. Primeiro, diz que FHC foi vítima de uma leitura apressada e maldosa. Em seguida, parece sugerir que a leitura não foi assim tão maldosa, porque afinal de contas, diz ele, FHC realmente derrapou naquele parágrafo sobre  o voto  do "povão".

Tal ambigüidade revela-se de todo na surpreendente conclusão geral do artigo, perfeitamente sintetizada no título: FHC foi vítima de uma leitura apressada e maldosa, mas, ao contrário do que poder-se-ia imaginar, Noblat sugere que o culpado é o próprio FHC, por sua suposta "derrapada". O colunista afirma com todas as letras: quem tem que aprender a lição é, no caso, a vítima da leitura desonesta, e não os seus autores (e, dentre eles, Lula em especial). Mutatis mutandis, o argumento equivale àquele dos que julgam que, num estupro, a culpa é da mulher estuprada - "ela provocou!".

FHC provocou, ou, como escreve Noblat, "derrapou". Qual foi a derrapada? A resposta é uma só: FHC falou a verdade. Falou não como o político que espera obter alguma vantagem eleitoral de suas palavras - como o fez Lula em sua crítica ao artigo -, mas como o analista que compreendeu e diagnosticou uma dada situação. Tal foi, na visão de Noblat, o grande pecado de FHC, o fato de ter sido muito pouco Lula em seu artigo. Ele foi verdadeiro e objetivo, escrevendo exatamente aquilo que enxergou. Que derrapada imperdoável! Noblat não considerou digna de uma reprimenda escrita a atitude desonesta de Lula ao distorcer, com fins eleitoreiros, as palavras de FHC. Em compensação, ele julgou necessário censurar FHC por ter permitido - Ó, que pecado! - que o sociólogo prevalecesse sobre o político.

Adotando aquilo que poderíamos chamar de "padrão Lula de qualidade", Noblat consegue transformar em vício a maior virtude do artigo de FHC, qual seja a de escrever como o analista em busca da compreensão da realidade, antes que como o político em busca de votos. 


Num país moral e espiritualmente são, Noblat escreveria uma coluna intitulada "A lição que Lula não aprendeu". No Brasil, esse reino de ponta-cabeça, a vítima faz as vezes do agressor e vice-versa. A ausência de malícia política é, por aqui, considerada uma falha grave.


A expansão e consolidação da estupidez lulo-petista jamais será compreendida sem uma análise de fenômenos como o texto de Noblat. Cito Voegelin mais uma vez sobre o caso alemão: "A estupidez tem sempre de ser entendida em relação com o contexto social e histórico" (op. cit. p. 134).

Noblat tem, evidentemente, o direito natural e constitucional de expressar sua opinião. Mas, num contexto político que caminha a passos largos para a completa hegemonia partidária e para o totalitarismo (vide os incansáveis projetos de "controle social da mídia"), um jornalista não tem o direito de corroborar a estupidez criminosa de um líder político de massa. Há tratamento para o lulo-petismo. Noblat só precisa se medicar.

Das Virtudes e Vícios do Ceticismo

Em maio de 2012, o autor destas linhas frequentava um curso preparatório para o difícil e concorrido concurso do Itamaraty. Faziam três...